Um casco de cebola

 


Há tradições alimentares que estão estritamente ligadas a um tempo de comida escassa, de dias longos em que a fome apertava e pouco havia para comer, deitando-se a mão aos poucos recursos disponíveis com alguma criatividade de permeio. Falamos da chamada gastronomia da fome que, agora, em tempos de abundância, está novamente na moda. Um tempo em que se comia a broa porque o pão branco era raro e caro, só acessível nos dias de festa; o presunto, o queijo e o salpicão, quando os havia, governavam-se cuidadosamente ao longo do ano, para as merendas das maiores fainas agrícolas e para dias e visitas especiais. Ao invés, no quotidiano abundavam os legumes frescos da horta, especialmente no Verão, particularmente tomates, pepinos, pimentos, cenouras e cebolas. Molhava-se também um pouco de broa nos restinhos de azeite que sobravam no prato, onde às vezes também se juntava um dente de alho ou umas azeitonas. A cebola crua, com sal e vinagre, ou simplesmente picada sobre as batatas ou os feijões, era acepipe de gente pobre quando mais nada havia para comer.

 

A gastronomia da fome volta a estar na moda

Pois bem, hoje tudo isso está na moda! Há uns anos atrás fomos sendo surpreendidos, quando alguns restaurantes chiques começaram a apresentar nas entradas das refeições pratinhos de azeite com pão caseiro (broa, centeio ou trigo de qualidade). E os convivas, um pouco desconfiados, começaram a molhar e a gostar. Claro que o azeite e o pão são de qualidade superior. O primeiro é feito com as melhores azeitonas, extra não sei o quê, primeira pressão a frio, …; e o pão, fermentado com massa mãe, amassado de forma tradicional e cozido em forno de lenha, etc, etc. Tudo com o melhor requinte do antigamente, uma época áurea em que tudo era puro e verdadeiro, se bem se lembram…

A moda pegou e agora junta-se também a cebola crua, salpicada de sal e uns laivos de vinho verde ou de vinagre. Procuram-se cebolas mais suaves na acidez, junta-se flor de sal e um vinho de qualidade. E ela aí está, ao lado das azeitonas, do pão com azeite, do salpicão, do presunto e dos muitos outros «entreténs de boca» com que se inicia a refeição.

 

 

«Cebola crua com sal e broa»

Miguel Sousa Tavares observou esta tradição alimentar quando, nos anos sessenta, frequentou a escola primária numa aldeia de Amarante. Conta ele, no seu «cebola crua com e sal e broa», que os colegas da escola levavam para o lanche (leia-se merenda) da manhã uma cebola e um pouco de broa. Quando chegava o intervalo lá comiam o acepipe, indo depois beber água para disfarçar a acidez que aquela lhes provocava na boca. Enquanto isso, ele, provavelmente, na qualidade de menino rico, devia comer o seu pãozinho de trigo com marmelada.

Fora da escola continuava-se com a cebola nas merendas da tarde. Mas aí envolvia-se em sal e vinho verde ou vinagre, alimentos que ajudavam a suavizar o sabor, anulando-lhe a acidez. Lembro-me de ouvir histórias de famílias que durante o Verão faziam algumas merendas com os legumes que se encontravam disponíveis na horta, entre eles, o pepino, o tomate e a cebola. E com estes alimentos, mais um pedaço de pão e um copo de vinho, seguiam para trabalhos agrícolas árduos, como tirar água dos poços com a picota para regar as hortas e os lameiros do milho.

 A cebola era um legume abundante nas hortas conservando-se fresco ao longo do ano, guardado nas adegas. Estava sempre disponível e, quando não havia mais nada, podia também servir de refeição ou de acompanhamento a umas lascas de bacalhau, a um pedaço de broa, a umas azeitonas ou de guarnição aos feijões ou às batatas, como já referimos. É claro que quem a comia gostaria de a substituir por algo mais substancial, se o houvesse…

Por tudo isto, soa a estranho, hoje, vermos estes acepipes na mesa. Não quer dizer que não sejam bons e saborosos, mas carregam atrás de si um tempo duro e difícil que, para quem o viveu, não era fácil suportar. Mas, como dizia o poeta, mudam-se os tempos…


 

 

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