Ossos de assuã
Em tempos de matança de porco urge
falar dos ossos de assuã e da sua importância na tradição alimentar portuguesa.
Comecemos pelas elites que, nos
tempos antigos, tal como ainda hoje, embora as diferenças estejam mais
esbatidas, tinham uma alimentação essencialmente baseada na carne de primeira
qualidade, como os lombos, os peitos e as pernas, no arroz, no pão branco e nas
massas sempre feitas com farinha alva de trigo. Entre os legumes dava-se
preferência às saladas, onde primava a alface, e os frutos eram consumidos com
parcimónia pois entendia-se que não faziam muito bem à saúde, embora fossem
bons para refrescar no tempo do estio. O peixe era também bastante consumido
mas por ser obrigatório nos tempos a que a igreja obrigava. Fora disso era
altamente rejeitado por ser frio e húmido, provocando a doença com muita
facilidade.
O povo contentava-se com os restos,
ou seja, os ossos, as vísceras, o sangue e as partes menos nobres do animal
como a cabeça, os pés, as mãos, as unhas e os rabos. Do peixe restava-lhes a
sardinha e o bacalhau, abundantes e baratos em todo o país. Sobre a sardinha,
dizia-se no século XVIII que era pingue e oleosa e que por isso fazia mal ao
estômago. Do bacalhau apregoava-se que era comida de rústicos e de gente que
trabalhava porque se digeria com dificuldade. As elites ainda hoje olham com
desconfiança para a sardinha mas, ao longo do século XX, aprenderam a
deliciar-se com o bacalhau e a fazer com ele pratos requintados.
Com tudo isto, e muita sabedoria,
foram-se fazendo pequenas delícias que constituem hoje o melhor da gastronomia
nacional. O que verificamos, de facto, é que da alimentação das elites pouco
sobrou para o nosso cardápio. Foi dos comeres do povo que saíram as maravilhas
com que hoje nos deliciamos à mesa.
Os pratos mais famosos
Vejamos alguns exemplos. As papas de
sarrabulho do Minho ou o sarrabulho da Beira, feito com o sangue cozido e
esfarelado. Ora, deste prato fazem parte, essencialmente, os ossos de assuã,
bem cozidos e bem “esbrugados” de todo o bocadinho de carne e tutano, o fígado
e outras vísceras, o sangue e, naturalmente, pão ou farinha, conforme a região.
Umas papas que se não se comparam à açorda alentejana onde apenas primavam os
coentros, o azeite, o alho e a água a ferver. Às vezes lá vinha um bocadinho de
carne gorda e então fazia-se a açorda de assobio, isto é, quando alguém
encontrava no prato um pequeno pedaço de carne dava um assobio. Tempos de
escassez!
Outro prato famoso são as tripas a
norte e a dobrada mais a sul, dando-se primazia ao estômago da vaca e às
tripas. Com estas os portugueses aprenderam a fazer também os mais diversos
enchidos, qual deles o mais saboroso.
Os rojões do Minho e os torresmos da
Beira, são também uma iguaria da gente mais popular. Devem levar alguma carne
do lombo, se a houver, mas essencialmente fazem-se com carne que tenha gordura,
que se vai derretendo lentamente para fazer molho e cozer as outras
carnes, como o figado, a tripa, o verde, enfim, tudo os que os
senhores não queriam. Havia até os
rojões de pingo feitos com a carne onde a gordura primava! Comia-se tudo e se
mais houvesse! No Minho a tripa dos rojões chama-se farinheira mas é
basicamente tripa recheada com farinha. Come-se frita na gordura do porco. É
uma iguaria muito apreciada, mas eu, aqui para nós, como Beirã habituada à boa
morcela e à boa farinheira, detesto.
No sul subsistem ainda os pezinhos de
coentrada, as migas ou a sopa de beldroegas. Nada disto ía a mesas nobres.
Por todo o país fazia-se cabidela de
frango que não é mais do que um arroz feito com o sangue e as vísceras da ave porque a carne era comida de doentes
ou de mulheres acabadas de dar à luz. Hoje, num tempo claro de abundância, refastelamo-nos
com o frango inteiro dentro da panela. As vísceras são apenas um pormenor e o
sangue constitui a marca de autenticidade.
Famoso também em todo o Portugal é o
cozido. Este prato é oriundo dos mais pobres mas também dos mais ricos. Só que
enquanto uns se regalavam com umas simples couves com toucinho ou uns ossos de
assuã, outros iam adicionado carnes transformando-se este cozido numa
verdadeira sopa de pedra, isto é, quanto mais se juntar mais rico é o prato.
Mas o cozido dos mais pobres, e que hoje se vende como repasto gastronómico,
levava apenas os ossos de assuã, as unhas do porco, o toucinho, o rabo e, se
houvesse, um pouco de vaca ou frango. Acompanhava com boas couves da horta,
nabos, cenouras e um pouco de feijão ou grão-de-bico. As batatas são uma
novidade do século XIX, já bem adiantado.
Continuando a nossa viagem gastronómica pelo
país vamos sempre encontrando estes denominadores comuns: vísceras e ossos, em
especial os de assuã, ou seja, o espinhaço do
porco, aqueles ossos da parte do lombo com alguns restinhos de carne e tutano
que não se deitavam fora e que serviam para fazer verdadeiras iguarias. Para
além da papas estes ossos eram essenciais no cozido à portuguesa, no feijão com
couves, na feijoada, ou em alguns enchidos, como a farinheira da nossa região
beirã ou o famoso butelo de Vinhais.
E quem diria que com um simples osso, hoje resto
para animais, o povo português aprendeu a confeccionar verdadeiras pérolas
gastronómicas tornando-se parte do nosso património cultural. É caso para dizer
que a necessidade aguçou o engenho! E que engenho!
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