Uma empada do século XVIII

 

Este blogue não é um espaço de receitas. Mas pela imposição de se falar de história da alimentação e de se fazer alguma reflexão sobre a gastronomia actual, algumas receitas, ou modos de cozinhar, acabam por ser registadas. 

Obra científica sobre Francisco Borges Henriques


Por isso, hoje, venho falar de uma receita. Apresenta-se com o título «empada de tordos, rolas, pombos, perdigotos, frangos, passarinhos e de todas as mais aves», e foi registada por Francisco Borges Henriques no seu livro de receitas, nos inícios do século XVIII. Este manuscrito pertence à Biblioteca Nacional e já foi alvo de alguns estudos. Destaco um primeiro estudo de Isabel Drumond Braga, publicado em 2004, pela Editora Colares, intitulado «O livro de cozinha de Francisco Borges Henriques», integrado na obra «Do primeiro almoço à ceia: estudos de história da alimentação». Esta autora, em 2017, volta a publicar outro texto intitulado «o receituário de Francisco Borges Henriques: culinária cosmética e botica em Portugal no século XVIII», Revista diálogos mediterrânicos, nº 12. Em 2020, Dulce Freire, no âmbito do projecto Reseed, coordena a obra «Receitas e Remédios de Francisco Borges Henriques», constituída pela transcrição total do manuscrito, acompanhada de um texto introdutório e um glossário. Livro editado pela Ficta editora, onde tive o prazer e a honra de participar. Dulce Freire coordenou, ainda, no âmbito do mesmo projecto, a publicação de um ebook denominado «Do manuscrito à mesa: cozinhar receitas do século XVIII» Finalmente, Isabel Drumond Braga publicou, também, em 2021 um ebook com a transcrição do mesmo documento, editado pela Relógio d’água

Todavia, apesar de todos estes trabalhos científicos, a riqueza deste texto proporcionará muitos outros, tal como Dulce Freire concluiu na apresentação do manuscrito. Só é pena que nestas análises, naturalmente enriquecedoras do debate científico, alguns dos ditos «cientistas» não reconheçam a existência do outro e finjam alegremente que ele não existe. Vive-se um jogo do faz de conta, perdendo-se, naturalmente, conhecimento. Mas, os egocentrismos de cada um pouco se importam com isso.

Tortas e empadas

Tirando este parêntesis, volto a Francisco Borges Henriques e à sua receita de empada. Sim, ele chama-lhe empada, mas na época não era incomum chamar-lhe também torta. Olhando as receitas de empadas e tortas que Domingos Rodrigues, apresenta no seu livro, «Arte de Cozinha», editado em 1680, não lhe consigo encontrar muitas diferenças. As definições de Raphael Bluteau, nos inícios do século XVIII, também não ajudam a esclarecer. Por empada diz ser uma «forma de pastel de massa sovada e grossa», e por torta uma «massa bem sovada e quase na forma dos pasteis comuns em que se mete e se coze carne, peixe, leite ou fruta». O autor, que estamos aqui a analisar, também não esclarece muito bem a diferença entre empada e torta. Numa das receitas (torta de maçãns a ingleza) que regista no seu livro, utiliza inclusive as duas palavras. Chama-lhe torta no título, mas, mais à frente, diz que para se estender a massa «fação a empada maior que hũa bacia da barba redonda», dando a entender que esta empada é o que nós agora chamamos de tarte. Na verdade, na documentação de alguns mosteiros, encontro empadas e tortas, doces ou salgadas, em forma de pastel pequeno ou em forma maior, cobertas, ou não, com massa por cima.

As empadas ou tortas comiam-se muito na época. De tamanho grande, divididas em fatias, ou mais pequeno, em forma de pastel individual, era um tipo de comida que se adaptava bem à mesa da época, onde o talher não era muito comum, privilegiando-se o uso da mão. Por outro lado, os acompanhamentos, da carne ou do peixe, eram preferencialmente o pão e o arroz, este mais em tempos de festa. Poderia usar-se ainda o cuscuz, embora fosse cada vez menos usual. A batata e o macarrão tornar-se-ão mais habituais apenas no século XIX. Temos, portanto, o pão, o arroz e as massas, feitas de farinha de trigo amassada e estendida. Massas que poderiam ser amassadas apenas com farinha e uma gordura (azeite, manteiga ou banha), com ovos ou em folhado. Se se envolvesse num ponto de açúcar podia, ainda, conservar-se durante mais tempo. Este tipo de acompanhamento tornava-se, deste modo, bastante interessante e delicado. 

Francisco Borges Henriques, enquanto cozinheiro, devia fazer empadas habitualmente na cozinha que dirigia. Em diferentes momentos do seu livro vai-nos dizendo que «a farinha para toda a empada se faça de trigo tremês por que não abra»; que se ponha «pastas de toucinho por sima da empada» e, noutra receita, aconselha a que a «massa, que constará de azeite bastante, sal, e agoa bem fervendo, con que se escalde o azeite para não escadiar, e por gosto a massa, e na caicha deitarão antes de meter o peiche, huns pos de pimenta, e antes de lhe por a tampa por sima».

     Só vantagens, por isso, na confecção de uma empada, de um pastel ou de uma torta!

A receita original

«Empadas de tordos rollas, pombos perdigotos frangos, e paçarinhos e de todas as mais aves, e destas he que uzamos

Depenados os tordos se poem ao lume, em agoa, e loiro o cravo da India, e pimenta tudo inteiro, que se cozão muito bem mas que se não esmigalhem, e se tirem a meio cozer, e tomarão bastante toucinho, e o picarão e quanto mais toucinho milhor e lhe botem, e cozidos se arredem, e pizarão cravo da India, pimenta, gengibre, e lho deitarão dentro sem tornarem ao lume, e bastante sumo de limão, e frio se fação as caichas com bom molho, e a massa consta de sal, e agoa, e bastante manteiga de porco, advertindo que a agoa se lhe bota fervendo para não escandear a manteiga.»

Nota à margem esquerda: «e se quizerem deitar na massa seo par de gemas de ovos, e seo borrifo de vinho branco e seos pos de asucar obcervando a mesma forma ficara tãobem boa.»

  A razão da escolha da receita

 Depois de a observar com atenção, foi a escolhida para se servir num jantar realizado em Tibães, em julho de 2024, organizado pelo Grupo de Amigos do Mosteiro de Tibães (GAMT). Uma comemoração dos 20 anos do   primeiro jantar de São Bento. Tradição que se iniciou em Tibães, em 2004, a quando da realização da exposição «São Bento/São Bentinho», e que perdurou alguns anos, sempre por volta do dia 11 de Julho, dia de São Bento. Tentava-se, neste momento gastronómico, reconstituir o jantar (que agora chamamos almoço) com que os monges comemoravam o seu Santo Patriarca.

 Todavia, se nos outros jantares havia um chefe a conduzir os trabalhos na cozinha, desta vez, porém, fomos nós, os organizadores, todos pertencentes ao GAMT, a cozinhar. Escolhemos a ementa e deitámos mãos à obra. Umas fizeram a sopa, outras o prato principal. A Dra Margarida de Araújo, nossa anfitriã mais querida e doceira inigualável, fez os doces. Coube-me a mim fazer a dita empada, que servimos logo a seguir à sopa. Na verdade, fiz sete, porque os convivas eram muitos. E foi desta maneira que interpretei a receita de Francisco Borges Henriques.

A escolha dos ingredientes

 Como se pode observar pela expressão «e destas hé  que uzamos», Francisco Borges Henriques está a dizer-nos que a fazia habitualmente, e ainda acrescenta uma nota mais esclarecedora na margem esquerda, dando a  entender que pode fazer a massa de uma outra maneira, ficando a empada igualmente saborosa. Aqui decidimos seguiras indicações da receita principal.

 Depois, tínhamos que escolher as aves já que o autor dá liberdade de escolha. Optámos pelo frango do campo e pelo pato.

Receita da empada, segundo a minha interpretação

 Recheio:

Pato e frango necessário para uma empada. Cozer as carnes com cravinho, sal, louro e pimenta. Depois de cozidas, desfiam-se e limpam-se de peles e ossos.

Num tacho fazer um refogado com cebola, alho, azeite e toucinho picado (utilizei toucinho de porco biológico e um pouco de banha feita com o mesmo toucinho). Deixar refogar e juntar as carnes desfiadas. Temperar com cravinho, pimenta e gengibre e juntar um pouco de amido de milho, desfeito num pouco de caldo de cozer as carnes. Envolver durante 2 minutos ao lume. Retirar e juntar sumo de limão.

Massa:

500 gr de farinha sem fermento, 2 colheres de sopa de banha de porco (a mesma que usei acima), sal e água quente da cozedura das carnes. Amassar bem durante 10 min. Deixar descansar a massa cerca de 1.30h. Depois estender a massa com um rolo e montar a empada.

Cozer a 180 graus durante meia hora.

Nota: ficou um bocadinho tosca, mas deliciosa!!

Bom Apetite!


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