Pão Bento... ou pão da vida!
Há tradições gastronómicas que nos enternecem. Pela simplicidade, pela força espiritual que transportam, pela história carregada de emoção que trazem até aos dias de hoje. É o caso do pão sagrado que, depois de benzido, se faz saudável e sem bolor por longo tempo, mantendo viva a sua presença e fazendo-nos crer que o pão, esse alimento sagrado e tão quotidiano, não nos faltará. Pão que significa vida. Pão que significa Deus. Pão que é um garante de abundância.
Num destes dias um colega de trabalho, o Joaquim Loureiro, ofereceu-me dois pedaços de pão benzido. Era o dia dos meus anos e, por isso, olhei para aquele presente com um carinho especial. A recomendação era que o guardasse num saco de pano e ficasse certa que ele se aguentaria firme e sem bolor durante longo tempo. Não era a primeira vez que tinha ouvido falar deste pão. Já o tinha conhecido em Coimbra, em Lamego e também em Braga, na igreja do Pópulo, numa tradição ligada a Santo António.
Este que me foi oferecido veio de Santo Adrião de Padim da Graça e está ligado a uma prática religiosa, talvez com mais de trezentos anos. Em poucas palavras, diz-nos a história que, por causa de um ano de fome na freguesia, a população pediu ajuda a Nossa Senhora das Candeias para uma boa produção de cereal na colheita seguinte, prometendo em troca uma oferta de pão a todos os pobres da freguesia. Concedida a graça cumpriu-se a promessa levando-se o pão ao altar para a bênção divina. A oferta ganhou tradição e passou, até hoje, a fazer-se, sempre no dia 2 de Fevereiro de cada ano, na capela de Nossa Senhora da Graça, da mesma freguesia, envolta de uma eucaristia especial. Surgiu nessa sequência a Confraria de Nossa Senhora da Graça que organiza a festa e procede à partilha do pão.
O ritual de partilha
O pão era apresentado pelas respectivas famílias que o amassavam e coziam nos seus fornos particulares. Actualmente existem padarias encarregues desta tarefa fazendo fornadas específicas para o dia. A partilha aos pobres é também hoje muito diferente do passado. Continua a haver pobreza, mas está agora mais envergonhada e com outras exigências. De qualquer forma o ritual de partilha continua com o mesmo cerimonial que, grosso modo, tal como o descreve Joaquim Loureiro, se faz da forma seguinte:
No final da Eucaristia, um elemento da Confraria lê o nome de
cada um dos lugares que compõem a paróquia e chama por cada um dos moradores de
cada lugar, inclusivamente dos emigrantes que pedem para que o seu nome não
seja esquecido. À medida que a chamada é feita, os presentes dirigem-se até ao
centro da capela onde está montada uma mesa. Aí os restantes elementos da
Confraria fazem um primeiro corte no pão, ficando um terço para a pessoa que
oferece e os restantes dois terços para dar aos pobres e restantes paroquianos.
Todo o pão que fica na posse da Confraria é colocado junto da mesa do altar. Segue-se
o corte de todo o pão em pedaços mais pequenos para ser distribuído à população.
Esta distribuição é feita ao início da tarde e, logo a seguir, faz-se a celebração
da Entrega da Cruz aos novos Mordomos que irão andar na visita Pascal. Como há
dois Mordomos da Cruz, cada um deles tem que levar um cesto novo e uma toalha
branca para o cobrir. No final do corte e da entrega do pão, o cesto é devolvido
aos Mordomos, contendo as migalhas e os pedaços de pão que sobraram”.
Eis uma bela e rica manifestação de fé onde o pão está no centro da partilha. Talvez já não sirva o propósito inicial, o de saciar a fome, mas alimenta, quiçá, uma outra fome, a de Deus!
PS - Este texto é de 2023. Agradeço ao meu colega Joaquim Loureiro a cedência das fotos tiradas na festa deste ano, 2025.
Comentários
Enviar um comentário