Arroz-doce...com pastilhas!


 Foto: Mário Brandão

Dizem os dados estatísticos mais recentes que Portugal é o país europeu com maior consumo per capita de arroz. Se fizermos uma breve retrospectiva ao passado ficamos a saber que o arroz-doce talvez tenha sido a forma mais comum de se apresentar à mesa portuguesa. Quem nos traz essa notícia é o cozinheiro espanhol Francisco Martinéz Montiño, em 1611. Por essa altura Portugal era uma região de Espanha e, por isso, importava que este cozinheiro real apresentasse no seu livro de cozinha algumas receitas desta nova região. É aí que vamos encontrar, pela primeira vez, uma receita de arroz feita à la portuguesa, com arroz, leite, ovos e açúcar. Servido em pratos decorados com mais açúcar e canela adiantando que se devia servir caliente. Um requinte que a esta distância não deixa de nos surpreender.

 

Quando chegou o arroz?

Mas como chegou o arroz à mesa dos portugueses nesses tempos antigos? Recorro agora ao mais recente artigo sobre o assunto. Foi escrito por Dina de Sousa, no número 1 da revista Diaita. Intitula-se “O melhor e mais nobre de todos os legumes”: a presença do arroz nas mesas terapêuticas”.

Começa por nos dizer a autora que o arroz chegou à Península Ibérica trazido pelos árabes. E por aqui foi ficando cultivado em terras alagadas e insalubres, prática considerada pouco saudável, por trazer várias doenças à população, nomeadamente o paludismo. Depois do século XVI o arroz prolifera no Brasil, mas chega também de África e da Índia, passando a sua presença à mesa a ser mais abundante.

Quanto ao seu consumo, desde a Idade Média que se observa ser um alimento essencialmente terapêutico. Cozinhava-se com leite de amêndoa ou utilizava-se como ingrediente principal no famoso manjar branco, um doce feito com galinha desfeita, farinha de arroz, açúcar e leite. Dina de Sousa disserta ainda sobre o seu consumo em casas monásticas, masculinas e femininas, no hospital de Todos os Santos, no hospital real de Coimbra e outros locais, sempre ou quase sempre, num contexto medicinal.

Tudo isto vem ao encontro do pouco que eu já sabia sobre o assunto quando o observei a ser comido pelos beneditinos, muitas vezes doce e em dias de peixe, e em alguns mosteiros femininos, também em dias de festa ou quando alguém estava doente. Comia-se arroz com carneiro, mas essencialmente arroz-doce. É que este arroz, junto com açúcar, leite e ovos, tornava-se um manjar dos deuses e medicinalmente muito interessante, porque todos estes ingredientes eram na época considerados terapêuticos. E se se observar as várias receitas de arroz ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII o que salta aos olhos é sempre o arroz na sua vertente curativa.

 

O arroz-doce no século XVIII

Tudo isto para chegar a uma receita de arroz-doce do século XVIII. Uma receita que me encantou porque constitui na sua essência um retrato de uma época, neste caso do tempo barroco. Trata-se da receita de arroz de leite que Francisco Borges Henriques regista no seu livro de Cozinha. Borges Henriques é um cozinheiro de mão-cheia, a cozinhar nos inícios do século XVIII para um clérigo que, primeiro trabalha no Tribunal da Inquisição, em Lisboa, e, depois, é nomeado Bispo de Elvas. A receita que guarda no seu livro de receitas é por isso rica e especial, digna de uma mesa nobre, com alguma proximidade à Casa Real.

Assim, para além do leite, do arroz, do açúcar e das gemas de ovos, o autor acrescenta-lhe “duas boas tigellas de nata” e aromatiza-o com “pastilhas de boca pizadas, e hũa gota de agoa de flor boa”. No final, verte-se para os “pratos com canella por sima e se quizerem meter no forno a cozer tãobem se faz”.

Alguém consegue imaginar a cremosidade e os aromas que emergiam deste arroz? Que sabor teriam aquelas pastilhas de boca? E a água de flor de laranjeira? Só para levantar o véu deixo uma receita destas pastilhas, das poucas que consegui, registada num outro documento do século XVII. Mas deveriam existir várias receitas de pastilhas, sobremaneira aromatizadas, muito ao gosto da época.

 

Pastilhas de boca de Castela

Asucar pasado por hũa peneira, no qual se bota a cantidade de canela que querem, pasada por peneira, e ambar, se querem. Amasa-se este asucar com claras de ovos somente, e depois de amasado se deixa estar esta masa dous ou tres dias em bola pera que se componha, e depois se fazem as pastilhas, e se deixão enxugar ao ar até que estem duras. (Ramos, Anabela; Claro, Sara - alimentar o corpo, saciar a alma: ritmos alimentares dos monges beneditinos, século XVII. Porto: DRCN/Afrontamento, 2013, p. 226)

É com certeza uma receita única de arroz-doce, que nos traz a exuberância do barroco para a mesa. Atrevam-se a experimentar… se conseguirem!

 

 


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