O sol engarrafado de Miguel Torga

 

 


No passado mês de Abril rumei à Lusa Atenas para o lançamento de um livro de uma amiga dos tempos de Coimbra. O tema era “Os sabores da mesa na obra de Miguel Torga”, da autoria de Dina Fernanda Ferreira de Sousa, publicado pela Colares Editora.

O evento aconteceu na Briosinha, um novo espaço da clássica pastelaria Briosa, há tantos anos situada no largo da portagem e onde sempre me deliciei com um pastel de nata, maior do que em qualquer outro sítio. A Briosinha situa-se um pouco mais à frente, em plena rua Ferreira Borges, no mesmo sítio onde durante muitos anos funcionou a livraria Nova Almedina. Mas como as cidades, e Coimbra é um bom exemplo, se viram agora para o turismo, a Briosa necessitou de um espaço para comercializar produtos gourmet para o turista, que ali se passeia com muita frequência rumo ao Quebra Costas, à Universidade, à Rua da Sofia, à igreja de Santa Cruz e a tantos outros lugares históricos e paisagísticos desta cidade, que é hoje património da humanidade. E vai daí nasceu a Briosinha by Briosa. Por lá encontramos o melhor do nosso Portugal. Das compotas ao vinho do Porto, passando pelas conservas, gelados, bolachas, enchidos, queijos e aquelas outras iguarias tão típicas da cidade com que a Briosa tão bem nos presenteia.

Muito perto dali ficava o consultório do Dr. Adolfo Correia Rocha, vulgo Miguel Torga, e era por esta rua que ele passava quotidianamente. Foi também por aqui que eu, um dia, ainda estudante, o avistei. Seguia sereno, dentro do seu sobretudo, mãos nos bolsos e olhar cabisbaixo. Era mais um vulto no meio da multidão. De repente alguém comentou - vai ali o Miguel Torga!

O espaço não podia, por isso, ser mais apropriado para ouvirmos falar deste poeta e dos sabores com que se deliciava à mesa.

Torga gostava do que é português, das nossas paisagens, das nossas gentes, das nossas tradições culinárias. E era um homem do campo, de origens humildes, onde sempre regressava para alimentar o corpo mas sobretudo a alma. Por isso, através dos seus livros e dos seus poemas a autora descobre o quotidiano alimentar rural que lhe foi familiar durante a meninice. E aí encontramos o caldo de couves, as castanhas cozidas, os carolos, a sardinha, o bacalhau e tantos outros sabores com que os mais pobres se nutriam num acto de partilha fraterna. Mas nesse quotidiano havia ainda a matança do porco, com tudo o que ela implicava, as festas populares e a caça, que era uma das paixões de Miguel Torga. Lá, no seu Douro vinhateiro ou nos campos do Mondego, e sempre que podia escapar às obrigações citadinas, perdia-se na caça às perdizes, narcejas, galinholas…, embrenhando-se pela natureza adentro onde se “reencontrava e limpava das mil sujidades antinaturais”.

Neste quotidiano, duro e difícil, havia, mesmo assim, sempre lugar para um doce e, qual homem do Douro, para um cálice de “vinho fino”. Dos doces Torga deliciava-se com cavacas, rabanadas, arroz doce e, porque não, com “pão-de-ló ensopado em vinho fino”. Do vinho, néctar sagrado, obtido depois de um calvário agrícola, Torga, numa exaltação poética, chama-lhe “sol engarrafado” concluindo que “nem há no mundo vinhos como os nossos”.

Mas o livro leva-nos ainda até ao Brasil, onde o poeta viveu, e sentiu a vida dura do que é ser emigrante com 14 anos. Aqui descobriu novos sabores mas… que não lhe deixaram saudades.

A todos estes percursos a autora nos conduz através de uma escrita simples, de grande rigor histórico, deliciosamente salpicada por pequenos excertos da obra do poeta e por testemunhos de outros poetas que com ele privaram.

E o livro continua com um conjunto de receitas que naturalmente fizeram parte do quotidiano do poeta, em Portugal e no Brasil.

Para terminarmos recomendo que se “embebedem” dos sois engarrafados do Douro, do Dão e de outras paragens. Mas “embebedem-se” também deste livro e cheirem o néctar que Dina de Sousa nos traz do nosso Portugal profundo que começa, finalmente, a estar na moda!

Maio, 2018

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