Numa cozinha do século XVIII com Francisco Borges Henriques


 

 

Habituados que estamos às nossas cozinhas modernas temos que fazer um grande esforço para recuar à azáfama de uma cozinha do século XVIII. As fogueiras crepitantes, os fogareiros para cozinhados mais delicados; as brasas para manter a comida quente, ou coze-la lentamente, os fogões e os fornos de lenha contrastam com a sofisticação actual. Mas temos ainda que juntar a força dos braços para amassar as massas, bater as claras e peneirar as farinhas, em peneiras de seda e de cabelo. Num tempo sem passe-vite nem varinha mágica era com peneiras e almofarizes que se moíam e pisavam certos alimentos como as frutas já cozinhadas, a amêndoa e o arroz.  E porque na cozinha não se fazia só comida, mas também caldos muito apurados, e outros remédios, para quando se estava doente, importava ter todo um conjunto de alfaias e de saberes sempre que o médico prescrevia uma determinada terapia. Depois não podemos esquecer a labuta diária de partir a lenha certa para as diferentes necessidades de calor e de ter águas limpas com abundância nas pias.

É este ambiente que sentimos pulsar quando nos perdemos na leitura das receitas e remédios de Francisco Borges Henriques, escrito pelo próprio na primeira metade do século XVIII.

Sobre este homem, não ficaram grandes registos que nos permitam hoje traçar-lhe um percurso de vida com segurança. Sabemos que foi servidor de um outro homem, rico e poderoso, Bento Beja de Noronha, juiz do tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, e, depois, Bispo de Elvas.

Mas, pelo seu livro de receitas e remédios, que escreveu para governo de sua casa, podemos, com alguma clareza, perceber os seus gostos, os cozinhados que foi preparando, as trocas de receitas que efectuou com várias personalidades da época: conventos, senhoras donas e colegas de profissão; assim como as receitas que foi colhendo das viagens internas e externas que fez ao longo da vida.

Percebemos, também, a forma como procedia à administração da vida doméstica e agrícola da casa que lhe estava confiada, quer fosse a casa do Senhor que servia ou, mais tarde, a sua própria casa.

Encontramos na obra de Francisco Borges Henriques o melhor da cozinha portuguesa do século XVIII. O velho mundo, com os seus ingredientes milenares, funde-se, finalmente, com os novos alimentos chegados nas naus que cruzavam o Atlântico e o Pacífico e, dos “novus mundus”, trazem o açúcar, a laranja doce, o feijão, o tomate, o pimento, a abóbora, o cacau, o café, o milho maiz, o coco… Encontramos uma herança que nos ficou e que hoje está à mesa de todos nós. Os pezinhos de coentrada, as azeitonas de Elvas, as tripas do Porto, o pão-de-ló, a feijoada, o molho de escabeche, o arroz de tomate, o cozido à portuguesa, o caldo verde ou a ginjinha. E porque não, também, os pastéis de nata, o toucinho do céu, os ovos-moles, o leite-creme ou os populares bolos de milho.  Todas o autor vai apontando por entre muitas outras num total de quase 700 receitas!

Aventurem-se nesta obra fantástica de 624 páginas, editada pela Ficta editora, e mergulhem no que de melhor, neste momento, se pode oferecer sobre a memória alimentar portuguesa!

 

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