Dias de peixe



Quando chega a Quaresma os católicos são convidados ao jejum e à abstinência do consumo de carne à sexta-feira devendo a ementa ser constituída por peixe, sinal de uma refeição mais frugal.
Sempre me interroguei o porquê desta prática alimentar. Afinal o peixe é hoje considerado mais nutritivo do que a carne e até mais caro. Uma vulgar sardinha é, às vezes, mais cara do que a pescada. Comer camarão ou linguado é uma refeição cara e requintada que em nada se assemelha à pobreza alimentar recomendada para a Quaresma. Mesmo o popular bacalhau, nutritivo e de difícil digestão, está muito longe de uma refeição frugal.
De onde vem então esta prática alimentar? Olhemos o que nos diz a História e recuemos à cultura greco-latina onde vamos encontrar a matriz da cultura europeia.
De facto, Hipócrates, no século IV a.c., e depois Galeno, no século I, consideravam que os alimentos se distinguiam por serem secos e quentes, frios e húmidos sendo que os mais saudáveis eram os moderadamente quentes e húmidos, isto é, temperados, daí derivando a palavra tempero, pois temperar a comida quer dizer equilibra-la, corrigi-la. Entre os alimentos frios estavam os peixes, as frutas e os legumes que não se deviam dar a doentes porque agravavam os sintomas e tornavam os saudáveis enfermos. Entre os quentes estavam a carne, particularmente a de aves, as especiarias e o vinho e era com eles que se tratavam as doenças. Desenvolveram assim uma pirâmide alimentar em que no topo estavam os alimentos mais nutritivos e mais saudáveis, as aves, e na base os mais prejudiciais à saúde, o peixe, por ser frio e húmido.
Perante este quadro, desde os alvores do cristianismo que os católicos são convidados a comer peixe como forma de conversão e purificação espiritual. O peixe constituía uma refeição pobre, facilmente digerível que rapidamente se libertava do corpo deixando-o livre para a oração e reflexão. Ao contrário, a carne é considerada alimento que nutre, que restabelece, que dá saúde, força e músculo. Com carne faziam-se fartas e lautas refeições que demoravam muitas horas a digerir. Quem trabalha quer carne! É também com carne que se celebram os dias de festa.  
Os católicos são assim convidados ao consumo de peixe, prática que se observa nos hábitos alimentares das ordens monásticas onde os monges fazem abstinência, durante todo o ano, às segundas, quartas e sextas-feiras, e jejum e abstinência diárias, com excepção do domingo, no Advento e na Quaresma. Nestes tempos de peixe proibia-se inclusive a manteiga optando-se pelo azeite para fritar o peixe e fazer, assim, um bom escabeche.
 No quotidiano monástico, e em particular na regra de São Bento, os monges devem fazer uma alimentação frugal constituída preferencialmente por peixe. Por este facto, ao longo dos séculos, alguns monges fingiam-se doentes para poderem comer carne a todas as refeições, mesmo na Quaresma, porque quando se estava doente comia-se carne, particularmente galinha, como forma de tratamento médico.
Actualmente com os conceitos alimentares completamente alterados talvez seja mais assertivo optar-se apenas pela frugalidade da refeição de sexta-feira, quer ela seja de peixe, carne ou vegetariana. Mas atenção porque o tempo pascal está a chegar e esse é o tempo da festa ou seja da carne!

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