A chegada das Morcelas





O ritual da matança do porco
Chega o Inverno e por toda a região, aqui e ali, faz-se a matança do porco. Uma tradição imemorial que traz sempre saudade a quem assistiu durante anos a todo este festim, que incluía o ritual da matança, propriamente dito, a lavagem das tripas no ribeiro, o almoço da matança com a degustação dos torresmos, e, pela tarde adiante, a cuidadosa e delicada  elaboração das morcelas. Nos dias seguintes vinha ainda a desmancha, o partir das carnes para as chouriças, de lombo e de bofes, o acomodar das carnes na salgadeira, a preparação dos presuntos, a confecção das panelas de banha, com uma corzinha de pimentão, a preparação do fígado, também em banha e que se conservava igualmente em panelas de barro, os vinha d’alhos, feitos num alguidar de barro, onde metiam os "coiratos" e o bucho e, finalmente, as farinheiras, feitas com as restantes carnes mais gordas e uma boa galinha da capoeira. Às vezes, com a água de cozedura das morcelas e mais umas poucas gorduras, pão, alho e condimentos, faziam-se as moiras, uma delícia em tempos em que tudo se aproveitava.

A receita de morcelas
Mas centremo-nos nas morcelas, uma das iguarias mais apreciadas da Beira Alta. Sobre elas transcrevo um texto delicioso que Esther Abranches escreveu no seu “Tempo dos Almocreves”, p. 135.
Neste texto revi todas as minhas memórias de infância sobre este pequeno manjar, pois era também desta maneira que a minha mãe  as fazia, dedicando a mesma atenção e cuidado à adição dos cominhos. Era um verdadeiro ritual, que só terminava pela a noite dentro e com a prova de uma boa morcela tostada no forno, acompanhada pelas tradicionais batatas.
E ficavam uma delícia! Que saudades!

Aqui vai o texto:
Logo que o sangue estivesse frio, cortavam-se fatias de pão suficientes para ensopar o sangue. Cortavam-se finamente o lenço e o redenho e punham-se estas gorduras a guisar com bastante cebola. Logo que loiras, experimentava-se entre os dedos se estavam bem cozidas, a fim de não  se encontrarem  ao cortar a morcela, e depois de frio deitava-se este guisado  no sangue, onde já estava o pão. Juntava-se um grande ramo de salsa bem migada, pimenta a gosto e cominhos, estes antes de mais que de menos, pois são o principal tempero das morcelas. Tinha-se posto sobre o fogão  uma grande panela cujo bordo  se atravessava com o cabo de uma colher de pau. A cozinheira responsável pelas morcelas metia as mãos na gamela e cuidava de desfazer muito bem o pão que tinha já completamente amolecido, assim como alguma gordura que se mostrasse menos guisada.
Procedia-se então ao enchimento das tripas, que já tinham sido cortadas à medida desejada e tinham sido atadas de um lado, com nó de tecedeira. As tripas eram sempre do próprio porco, para as morcelas, e só ficavam cheias até três quartos do seu comprimento.
Conforme se iam enchendo assim se iam dependurando no cabo da colher de pau, ficando completamente mergulhadas na água a ferver na panela. Iam-se picando com uma agulha e quando já não saísse sangue das várias picadelas eram retiradas e enfiadas numa vara de fumeiro. Deve dizer-se que antes de se proceder definitivamente ao seu enchimento, era a massa das morcelas experimentada não só pelas cozinheiras; vinham senhores e senhoras à cozinha para darem a sua opinião e só depois de consenso unânime sobre sal e pimenta é que eram enchidas, pois quanto a cominhos todos pediam sempre mais um bocadinho. 

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