O cidrão na mesa de Natal


  Cidrão em Pico de Regalados, 2011

                                

Não cresci com cidrão. Só há poucos anos sei o que é. Descobri devagarinho, depois de ler várias vezes, em documentos do século XVII e XVIII, a referência à compra de cidrão cristalizado e de um doce denominado cidrada (feito com cidrão). A estranheza da denominação levou-me a fazer perguntas, aqui e ali, e a perceber que se trata de um citrino, que dá uns frutos amarelos, parecidos com o limão, mas muito maiores e muito mais aromáticos. A árvore que o produz chama-se cidreira e o fruto também se pode chamar cidra. Nada de confusões com a sidra, ou seja, uma variedade de maçã que depois de fermentada dá uma bebida.

Procurei esta árvore no país e encontrei-a na Madeira e no Minho. Sim, no Minho ainda há cidreiras que produzem cidrões, ou cidras, que são vendidos para as empresas de fruta cristalizada. Fruta esta que se comercializa especialmente na época natalícia, sendo o cidrão obrigatório para decorar o bolo-rei. Ou melhor, era, porque o preço elevado a que agora é vendido, por causa da pouca produção,  faz com que raramente se encontre na decoração deste bolo tradicional.

 

                                           

Porque já não há cidrão?

Mas é aqui que a pergunta se impõe: porque deixou de se produzir cidrão? Na verdade, este fruto tinha uma importância medicinal muito importante, sendo quase obrigatório ter uma cidreira no quintal.  O médico Francisco da Fonseca Henriques, em 1721, diz-nos na sua obra “Anchora Medicinal” que

 “a cidra é um fruto todo medicamentoso, cordial e estomático. Não tem parte inútil. Da casca de fora se faz aquele doce a que chamam casquinha, e do interior da casca o cidrão, que he o príncipe dos doces. Nutre muyto. O azedo da cidra he cousa mui cordial. Útil para flatos melancólicos, do útero e para febres. Das pevides têm virtude alexifármaca, por isso se dá a beber nas febres malignas a água cozida com elas. Da casca seca da cidra se faz um xarope de virtude cardiaca. Toda a cidra he um contraveneno”.

Percebemos por este texto que o seu consumo se fazia em doce, cristalizado ou em casquinhas, também cristalizadas. Com a polpa fazia-se o doce, que podia levar casca ralada, ser enriquecido com amêndoa ou chila e depois aromatizado com âmbar e água de flor de laranjeira. O cidrão era feito com os cidrões partidos em quartos, com ou sem casca, e cristalizados em açúcar. Com as cascas faziam-se ainda casquinhas cristalizadas que tinham várias utilizações medicinais.  

 Enquanto medicamento, para além das aplicações citadas enquanto doce, encontramo-lo a servir de base para a elaboração de xaropes, preparando-se com o sumo em açúcar.  Também se adicionava a pratos salgados sendo célebre a “galinha com cidrão”.

Ao longo do século XX, em consequência do desenvolvimento da indústria farmacêutica, o cidrão foi sendo cada vez menos consumido e a produção também foi sendo abandonada. Desta realidade é exemplo a obra de Maria de Lourdes Modesto, “cozinha tradicional portuguesa”, editada em 1982. A autora, que percorre o país e apresenta o que de mais genuíno existe na cozinha portuguesa, exibe apenas cinco receitas onde este fruto ainda persiste como ingrediente, três na região da Madeira e duas no Alentejo.  

Actualmente o cidrão ainda resiste nas melhores receitas de bolo rei! Mas é preciso procurar… Espero que já se tenham cruzado  com esta maravilha da nossa gastronomia tradicional!

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