Papas de milho no Carnaval (Quintela, Mangualde)
Nos últimos anos tem sido notícia o consumo de papas de milho, por altura do Carnaval, na freguesia de Quintela, em Mangualde. Estranha tradição num tempo de consumo de carne, de despedida para um tempo novo – a Quaresma – que impõe 40 dias de jejum e abstinência, num apelo constante de renovação interior, onde a carne se ausenta por estar ligada a conceitos de nutrição, de conforto e de saúde.
Comida pobre
As papas de milho, embora confeccionadas com chouriça, faziam parte do cardápio da gente pobre, a que se recorria quando nada mais havia para comer. Se faltava o feijão, e mais recentemente, as batatas, recorria-se às papas de milho ou rolões. A própria chouriça que lhe era adicionada era, também, de segunda categoria. Chamam-lhe «chouriça de boche» por ser feita com os bofes do porco e outras carnes mais secundárias e ensanguentadas. Quando se ia ao moleiro moer a farinha de milho para fazer o pão, mandava-se também moer, mais grosseiramente, um pouco de milho que se guardava em casa para quando outros recursos alimentares escasseavam.
A chegada do milho
Se recuarmos no tempo observamos, também, que o milho entrou na alimentação dos beirões, e dos portugueses em geral, apenas nos finais do século XVI, estando a festa do Entrudo implantada nas tradições culturais de toda a europa desde a Idade Média. Em todas as aldeias do concelho eram as carnes de porco que faziam parte da refeição carnavalesca das gentes do povo. Acompanhavam com nabos e couves, e, mais tarde, batatas, aquilo que se vai chamando «cozido à portuguesa», ou que, no século XVIII, se chamava «olha». De milho, só a broa a acompanhar!
Este novo cereal, vindo da América, vai ter um sucesso tal que as gentes do campo rapidamente aprendem a transformá-lo em pão. Chamam-lhe milho grosso, milho da índia, zaburro, milhão, milho grande, milho graúdo. O seu grão, muito maior e bem mais produtivo do que qualquer outro, vai provocar uma autêntica revolução. Ao longo do século XVII torna-se paulatinamente o pão dos pobres. Adapta-se na perfeição na região do Entre Douro e Minho e na região de Lafões que se prolonga até à da serra do Montemuro. Nas Beiras e na Estremadura cresce vigoroso nos lameiros mais fundos onde a água é mais abundante. A paisagem agrícola vai modificar-se! Multiplicam-se as picotas e as noras. Abrem-se poços, constroem-se presas e levadas e encaminham-se águas de modo a que a todos chegue o precioso líquido. As questões judiciais pela partilha da água marcam o quotidiano rural.
Na região Beirã a produção de milho consolida-se nos finais do século XVII, relegando para segundo plano todos os outros cereais e até a própria castanha, que constituía um recurso alimentar importantíssimo. O pão de milho passa a marcar o quotidiano alimentar e com ele também as maçarocas, em verde, e as papas, feitas com o milho moído grosseiramente.
Uma nova tradição alimentar
Mas se as papas nunca foram tradição carnavalesca passaram a sê-lo agora. Curiosamente, num tempo em que já pouco milho se cultiva na Beira e em que a broa e as próprias papas já não são alimento quotidiano. Esta tradição é apenas fruto da vontade individual de uma senhora que resolveu fazer uma comida aconchegante para quem andava a cantar durante toda a noite, de segunda para terça-feira de Entrudo. E porque o hábito se foi repetindo, ao longo de trinta anos, acabou por virar tradição alimentar. A história tem destas ironias!
E lá voltamos ao milho! Relembro apenas as palavras do historiador francês, Fernand Braudel: o milho é uma personagem histórica apaixonante!
Comentários
Enviar um comentário