Folares de Páscoa
A visita pascal
Em Maio de 1734, há alguém que resolve levar ao conhecimento do Tribunal do Santo Ofício, um caso curioso de visita pascal passado na freguesia de Vilela, Arcos de Valdevez:
“he uso nestas terras irem ou
mandarem os párocos pela páscoa com a cruz da freguesia deitar água benta pelas
casas dos fregueses e arrecadar os folares. E he abuzo intolerável andar com a
cruz muita gente com festejos, em que se fazem muitas indecencias e peccados
pello muito que bebem huns em casa dos outros adonde vão beijar a cruz, e têm
por injuria, que não esquece, faltar algum parente ao beijar da cruz. Por este
abuzo sucedeu que indo a cruz de Vilella per parte donde aquella freguesia
confina com a de São Cosme, e vinha também per aquelle sitio a cruz de São
Cosme e avistando-se com a de Vilella começara a gente de São Cosme a dar
surriadas e apupadas à cruz de Vilella que, se este pároco não fora prudente,
virião a cerrar as pancadas e que isto fora um escândalo grave. Eu suposto
respondi que me não parecia cazo de dar conta porque aquilo se não fez à cruz,
mas aos freguezes e que seria vinho, contudo pella indecência por vir ali a
cruz como em procissão dou a mesma conta a V. Senhoria.” (TT, TSO, maço 25, doc.6)
Por este breve documento ficamos com várias informações bastante interessantes para o contexto social da vivência da Páscoa. Percebemos que a visita pascal já se fazia no Alto Minho na primeira metade do século XVIII. Percebemos que as comunidades andavam em procissão a acompanhar a cruz pascal. Percebemos que já andavam bem comidos e, sobretudo, bem bebidos; e, finalmente, ficamos a saber que os párocos recolhiam folares.
Pois bem, tiremos os folares a esta descrição, e quase que apetece dizer que muito pouco mudou na visita pascal minhota nos últimos trezentos anos! Já no século XXI, também eu assisti a visitas pascais onde padres e fregueses seguiam no cortejo bem comidos e bem bebidos.
Os folares
Todavia, sem nos perdermos em pormenores, são os folares que nos interessam em particular. Uma iguaria do tempo pascal que já faz parte do nosso cardápio há vários séculos. No século XVII, observa-se que os monges de Tibães recebiam pela Páscoa vários folares, vindos das igrejas anexas que se espalhavam pelo Minho e sobre as quais detinham o direito de nomeação dos párocos. Uma tradição que se mantém intacta até à extinção do mosteiro, pois verifica-se, ainda em 1824, o pagamento de uma gratificação aos homens que trouxeram os folares do couto da Estela (Póvoa de Varzim), da freguesia da Lama (Barcelos) e da vila de Punhe (Viana do Castelo). Contudo, para além dos que recebiam, igualmente se observa que mandavam fazer, também, alguns folares para o dia de Páscoa pois observa-se a compra de “ovos para os folares”. E, como se pode observar por este documento, os párocos das freguesias minhotas quando faziam a visita pascal lá recebiam o seu folar. Tradição que chegou ao século XX e que muito bem foi documentada pela nossa literatura, ao longo dos últimos dois séculos. Quem ler Camilo, Eça ou Aquilino lá encontra os folares pascais a fazerem as delícias dos vários personagens, que se passeiam pelos enredos por eles ficcionados. E encontra também o folar enquanto presente que os padrinhos dão aos afilhados.
Como seriam estes folares? Sabemos que a cozinha do povo, de tão pobre e popular, não ficou registada nos livros de cozinha que, até século XX, eram apanágio das elites. Vem em nosso auxílio Raphael Bluteau que, no seu vocabulário português e latino, por volta de 1720, os define como “qualquer mimo de cousas de comer que se manda pelas festas da Páscoa”, sugerindo que podem ser feitos com “ovos duros colocados sobre massa estendida”. O mesmo nos diz Josefa d'Óbidos, uns anos antes, através da sua pintura. Sim, estes folares ainda hoje existem, mas lá para as bandas de Lisboa, de onde nos escreve o dicionarista e onde a pintora também residia. São uma massa de pão doce fermentada, que se tende com ovos cozidos dentro, antes de ir ao forno. Mais para o Norte, os folares levam carne e são célebres os de Bragança e de Valpaços, embora também os haja sem carnes, adoçados e aromatizados com canela e erva doce. No caso de Tibães, regista-se, como já referi, a compra de ovos para os folares, ficando a curiosidade sobre os outros ingredientes.
E, como nos diz Bluteau, o folar poderia também não ser um bolo ou um pão doce, mas um outro qualquer «mimo» para comer. Mas foram aqueles que perduraram no tempo e que ficaram nas nossas tradições alimentares.
Mais doce ou menos doce, com ovos ou com carne, mais pobre ou mais rico, conforme as posses de cada um, o folar é um bolo popular, típico da Páscoa, com um modus faciendi diversificado, que faz as delícias dos portugueses há vários séculos.
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